terça-feira, 12 de janeiro de 2010

23º Corte ( - Lá fora, há guerra - )

Há um quilômetro dali, crianças brincavam nos fundos de uma casa abandonada com seus pequenos revólveres, atirando intermitentemente no corpo de um cachorro morto pendurado no umbral da porta. Se você parasse para prestar a atenção ouviria o estampido seco dos tiros que perfuravam o cadáver. E se não parasse para prestar a atenção, ouviria mesmo assim.
A popularidade do tiro ao alvo crescera depois que os adultos começaram a não voltar da Guerra. Tiro ao alvo e crianças armadas. A Lei permitia armas para maiores de vinte e um anos. Contudo, não havia mais tantos adultos para comprar armas de menor calibre. Aos emancipados era vetada a venda, mas com o fenecimento do mercado interno, a necessidade de comercialização nos estados e o aumento da demanda e produção, armas começaram a aparecer nas mãos dos mais novos.



A maioria das mães e pais haviam ido à Guerra. Era assim que tinha de ser, ali e por todas as cidades do país. Enquanto os pais lutavam, os filhos eram emancipados e deixados para trás. A Lei guardava os filhos durante A Guerra. A Lei dizia que os mais velhos, não tão velhos, cuidariam dos filhos mais novos enquanto os pais lutavam, se fossem capazes. Mas onde já se viu palavras escritas no papel protegerem alguém?
A Guerra era importante. Preservaria o futuro dos filhos da nação, diziam os cartazes espalhados nas ruas e as promoções do governo. Contudo, o tempo passava, os filhos cresciam e atendiam ao chamado da Guerra ao completarem vinte e três anos, também deixando seus próprios filhos e irmãos para trás. Pais deficientes ficavam na cidade e normalmente eram obrigados a adotar crianças pela Lei.



Ninguém ousava viajar além da fronteira devastada, onde as tropas inimigas marchavam sobre as cidades moídas por bombas, mais ou menos a mil e duzentos quilômetros, seguindo na direção noroeste da capital. Ninguém voltava. Não vivo. Os vagões dos trens atravessavam limites da cidade recheados de corpos contaminados que diziam ser de vítimas da Guerra. Diziam que eram levados ao crematório para serem incinerados e postos em urnas no cemitério que ficava nas zonas subterrâneas da cidade.
No início da Guerra os filhos recebiam regularmente cartas de seus pais, aspergindo o cheiro úmido da esperança entre as linhas escritas. Mas ao passar das décadas, por motivos recônditos nessa história, não eram mais trocadas tantas correspondências. Perdera-se o costume, ambas as partes. Ninguém se importava. Passaram-se duas gerações, a primeira animada com a possibilidade de lutar pelos ideais bordados na bandeira, e a segunda, educada por programas diários de TV, afastados dos pais pela distância da Guerra.
Foi de repente. Os jovens começaram a se dividir em grupos, sem motivos aparentes. Em algum ponto não exato da história os filhos deixados para trás começaram a se defender de perigos inexistentes, cada vez mais hostis, tornando-se assim vítimas de suas próprias mãos.



Diziam que A Guerra surgira através de disputas por territórios, físicos, comerciais ou espirituais. Ainda tinham aqueles que sugeriam que A Guerra viera desde a sua invenção, logo quando o homem decidiu que assim fosse. Empunharam armas, da pedra ao aço, e seguiram para sempre à única direção que o tempo apontava. Assim seria até o fim. Até o dia em que não restasse homem ou alma para pisar a terra. Talvez fosse verdade, mas era certo que a Guerra teve seu início bem antes que o mundo começasse a acabar.
Ademais, já era a terceira geração que combatia na Guerra. Não se sabia mais exatamente quanto tempo havia se passado desde seu principio e menos ainda se sabia o que a motivara.
As pessoas eram assim agora. Viviam para lá e para cá. Poderiam viver até os vinte e três anos como civis. Depois disso, lhe vinham buscar em um veículo do exército para certamente morrer na Guerra. A morte parecia ter algo a ver com armas radioativas ou químicas.
Aqueles que desertavam, não desertavam. Eles sumiam.
Existia uma cidade na costa que era rica. Paraíso do consumo. Todos queriam ir para lá porque, se fizesse dinheiro o suficiente, podia evitar a Guerra. Mas isso foi antes do mundo começar a acabar e o mar engolir as primeiras construções de concreto e metal.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

22º Corte ( - ou Continuação de Rosanah - )

Uma brisa soprou no rosto de Rosanah. Iúre fez uma careta ao sentir o cheiro de carne queimada no ar e disse:
- Ei, peituda. Depois vocês se apresentam. Por enquanto vamos para casa enquanto ninguém ainda nos viu. Lá vocês podem fofocar à vontade.
Áhlima era temperamental, principalmente quando se tratava de pôr seus seios grandes na conversa. Odiava quando os rapazes a viam como se fosse uma coisa que pudessem tratar como desejassem. Como uma coisa inanimada, com valor de mercado. Já tinha pensado em fazer uma cirurgia para diminuí-los, mas era caro demais para uma garota pobre que viera com praticamente nada do interior. Havia tantos problemas nas ruas e as pessoas ainda conseguiam se importar com o tamanho dos seus seios. Aquele era um forte indício que o mundo realmente havia começado a sucumbir em sua fumaça tóxica. Realmente havia começado a acabar.
- Seu idiota! Se me chamar disso de novo eu viro seus pulmões do avesso! Vou socar tanto sua cara que vão confundir com sua bunda!
- Olhem! Eu salvei essa vadia e o que ela me dá em troca? Um monte de insultos! Eu devia ter deixado aquele infeliz enfiar uma bala entre seus olhos. Não estaria tendo que ouvir essa vaca falando agora...
O sangue de Áhlima permeou sob a pele da face. Ficou enraivecida. O segurou pela garganta e o fez sufocar. Iúre puxou o cão do revólver e apontou na direção dos intestinos da moça.
- Esh-ffá ma-ffu-ca? Ffer Moffer??
- Fala direito seu imbecil.
Rosanah olhou para os dois como se eles fossem insignificantes. Balançou a cabeça e disse:
- Parem. Olhem para lá.
Não mencionou nada mais. Foi imediato. Áhlima largou a garganta de Iúre. Ele abaixou a arma. Ás vezes Iúre ficava com medo da eloqüência da voz de Rosanah. Nunca vira ninguém desobedecer a sua ordem. Não tinha a ver com sua bela aparência, nem com o timbre doce com que articulava as palavras. Tinha a ver com seus olhos. O seu brilho. Dava uma confusa vontade de fugir, ao mesmo tempo em que queria olhar mais, chegar mais perto, se diluir neles.
Rosanah apontou a saída do refeitório. Estava para Lúcio, que arrastava Jonas pela gola da camisa.
- Quem são?
- Acho que o nome é Jonas. O outro não conheço. Nunca vi na escola, ou nunca percebi. Deve ser um daqueles fracassado ou é da turma para garotos especiais. Nome bonito para retardados, não é? Sala 1202. Depois vocês passam lá para fazer caridade. Agora vamos embora. Estou tendo um mau pressentimento sobre ficarmos aqui.
- Sim. Vamos embora. Estou tendo um péssimo pressentimento também.
Rosanah pôs as mãos na cadeira de rodas com naturalidade e seguiu pela trilha de árvores mortas.
{Longe e ali, em outro lugar e todos que pudessem existir, eu digo: ela era linda}.